Era uma vez um transmontano de ar castiço chamado Adolfo Correia da Rocha que, a certa altura, começou a escrever. Não escreveu nada pouco. Entre prosa e poesia, sucederam-se várias dezenas de volumes, os quais ele próprio editou e lançou sob o pseudónimo de Miguel Torga. Um deles veio a tornar-se uma obra célebre e de referência, de tal modo que ainda hoje é ensinada nas escolas básicas e secundárias. Trata-se de «Bichos». Não cheguei a apanhar esse livro na escola. Contudo, a curiosidade e a insistência de letrados que conheço em ler o livro levaram a que eu pegasse num volume que me viera cair às mãos há uns anos. Vamos então abrir a «Caixa de Pandora».
- Género - Ficção. É uma colectânea de contos editada em Coimbra pelo próprio autor e publicada em 1940.
- Organização - A edição que eu li é a 16ª, a qual conta com um total de 135 páginas divididas em Prefácio e 14 contos.
- -História - Cada conto, em geral muito curto, narra a história de vida ou um episódio em particular de um bicho.
- Crítica - Esta obra pode ser apreciada quanto à forma e quanto ao conteúdo, ambas muito díspares. No que respeita à forma, os contos apresentam-se muito bem escritos, com frases bem construídas e de linguagem que é compreensível com facilidade a qualquer pessoa, mesmo que de baixa instrução. Está polvilhada de alguns regionalismos que nem por isso afectam o entendimento dos textos por alguém até do extremo oposto de Portugal. De facto, qualquer leitor fica desde logo encantado com a benevolência e ternura com que é tratado, numa escrita cuidada e sem mácula, logo no prefácio, que é digno de ser lido, ao contrário do que amiúde acontece. Porém, se toda esta redacção aprimorada acompanha o resto da obra, já o mesmo não se pode dizer dos afectos.
Ao mergulhar nas breves histórias, somos logo surpreendidos com um tom um bocado diferente. As coisas não são do mais fofinho e queriducho que se possa imaginar. Na realidade, abunda neles a tragédia e a violência. Outra constante é a morte. Dos 14 contos que compõem os «Bichos», apenas quatro não acabam na morte da personagem principal ou de uma outra às mãos desta. Numa, a da Cega-Rega, não há morte mas tudo dá a entender que a cigarra não perde pela demora para esticar o pernil. O mesmo acontece com o galo Tenório. A do sapo Bambo começa logo com morticínio e é de descrição particularmente macabra. Mas não quero dar trabalho aos leitores. Poupo-os à trabalheira e ao tempo perdido a ler o livro com os seguintes resumos dos contos.
NERO é um cão perdigueiro que conta a história da sua vida e no fim morre.
MAGO é um gato mal-agradecido que levava uma vida de vadiagem até ser acolhido pela Dona Maria da Glória Sância, que gosta e trata bem dele. Porém, ele despreza-a e parasita-a. Continuou a vadiar. Um dia levou um enxerto de porrada e ficou quase morto. Voltou aos detestados cuidados da sua dona, que cuidou bem dele. (Devia ter lerpado!)
MADALENA é uma mulher que se embebeda pelo São Martinho e enrola-se com o Armindo, um vizinho de falinhas mansas com castanhas e jeropiga à mão. Fica grávida, oculta de todos a gravidez e, chegada a hora de dar à luz, foge durante a noite para a casa de uma amiga, numa aldeia próxima. O bebé nasce a meio do caminho, na Serra Negra, morto. Ela enterra-o e segue a sua vida.
MORGADO é um macho, que, para quem não sabe, é o equivalente masculino à mula. Mais digo: que pelo trato que lhe dá («jerico»), é um macho burrinheiro, ou seja, filho de um cavalo e de uma burra. Foi comprado por um moleiro. Abalou com ele numa viagem para entregar farinha mas viram-se cercados de lobos. O dono fugiu e ele foi apanhado e morto pela alcateia.
BAMBO é o sapo. Caiu nas boas graças do Tio Arruda, um caseiro. Certo dia este morre e é substituído por um outro. O filho do novo caseiro era um miúdo bera do piorio e empalou o pobre sapo, deixando-o a apodrecer.
TENÓRIO é o galo. De pena, carne e osso, não de lata de conserva em folha de Flandres. Em frango, deu nas vistas e ficou a substituir o galo velho, que foi parar ao tacho. Contudo, e após anos de muita galadela, um frango novo deu nas vistas...
JESUS. Tirando Cristo Nosso Senhor, não é aqui explícito quem é Jesus. A história fala de um miúdo que subiu a um cedro e viu um ninho de pintassilgos. Nada mais.
CEGA-REGA é a cigarra. Nasce, canta e ignora «a morte que a espreitava já, com os olhos frios do Outubro...».
LADINO é o pardal. Um texto que fala da vida dele e maldiz um tal Padre Gonçalo. O Ladino safa-se bem a tudo.
RAMIRO não era um atum mas sim um homem de quem não se ouvia a voz. Não dizia uma palavra. Era tarado, comia uma rapariga, a Rosa, com os olhos mas não era capaz de lhe dirigir palavra. Tinha um rebanho de ovelhas. Um dia, um outro ovelheiro, o Ruela, deixou as suas ovelhas chegarem-se ao rebanho do Ramiro e misturarem-se com elas. O Ruela tentou enxotar as dele mas, com uma pedra mal lançada, por azar matou a melhor ovelha do Ramiro, ainda por cima prenha. Apesar dos pedidos de perdão e das súplicas, o Ramiro matou o Ruela a golpes de foice. De seguida, chamou o rebanho para recolher ao curral.
FARRUSCO é um melro. Uma rapariga, a Clara, pergunta aos cucos quantos anos vai ficar solteira. O cuco canta três vezes e a Clara vai-se queixar à Isaura, a alcoviteira lá do sítio. No fim do dia, o melro aparece e canta e pensam que é ele a rir-se daquilo.
MIURA é um touro que é levado para uma tourada e, no fim da lide, leva a estocada e morre.
O SENHOR NICOLAU começou por ser um aluno medíocre que só dava o ar da sua graça nas Ciências Naturais. De resto, um desastre. Por volta dos 30 anos, regressou à terra e passou o resto da vida a fazer nada mais que coleccionar bichos. Um dia, morreu de velho.
VICENTE é um corvo, pois claro! Muito antes do santo do seu nome ter sequer nascido, a Humanidade corrompida foi castigada com o Dilúvio. Este foi um dos que embarcou na Arca de Noé. Só que o bicho era rebelde e certo dia fartou-se da viagem que o pretendia salvar e foi-se embora à procura de terra firme. O gajo era suicida, que é que se há-de fazer? No entanto, encontrou o cume de uma montanha da Arménia que não estava submerso e aí poisou. Deus quis que ele regressasse à arca para se salvar mas ele não quis e ateimou contra a vontade divina. Ficou na dele e Deus desistiu.
Fixo-me agora num mero detalhe, com brevidade. Sem saber grande coisa sobre Miguel Torga e, para ser franco, também não quero perder tempo e neurónios com isso, a obra dá a entender que o autor não nutria grande apreço pelo Clero e pela religião. Isso é patente na forma como se refere aos padres, dos quais fala só de relance ou, no caso do Padre Gonçalo do conto «Ladino», com desdém, classificando-o de comilão parasitário e, indirectamente, mulherengo. A não ser que ele se referisse a alguém em particular e não necessàriamente a uma figura estereotipada de padre. A maneira como fala de Deus, em particular no conto «Vicente», também não é abonatória. O «duelo entre Vicente e Deus» é estúpido uma vez que Deus pretende salvar o idiota do corvo e, no final, a prevalência da teimosia do animal é vista como uma vitória sobre a divindade. Não se percebe.
Mantendo-me no domínio do divino, porque será que o conto «Jesus» tem esse nome? Se calhar porque não só ninguém morre como ainda nasce um pintassilgo. Podia também ter nascido a esperteza, o que não aconteceu. Os pais ficam preocupados porque o filho subiu a uma árvore. Oh, que arrepios... Até há meia-dúzia de anos, qualquer criança subia às árvores e os pais não se costumavam preocupar pois era um comportamento normal. Deveriam era preocupar-se porque o miúdo não sabia falar como deve ser. Podia ter dito «sei de um ninho» ou «sei onde há um ninho» ou «vi um ninho» ou «encontrei um ninho» ou coisa do género mas o pirralho dizia «sei um ninho». Não admira que tivesse de o dizer várias vezes, os pais não percebiam o que ele queria dizer.
Já que temos a mão na massa, também depressa se conclui que Miguel Torga pouco ou nada percebia de touradas, em particular lides apeadas. No conto «Miura», fala-se muito no «palhaço de lantejoulas», dourado, e não parece haver outro interveniente humano na arena. Ora ele, que sendo com traje de luzes dourado é o matador, não é o único. Também intervêm peões de brega, de traje bordado a preto, e bandarilheiros, de traje bordado a prateado. No final, o touro deixa-se morrer precipitando-se contra o estoque para que ele penetre no seu tetuço. Isso é estúpido. Nem um touro se comporta assim, com suicídio consciente, nem tal acção é permitida. Parece que o escritor não sabia que há séculos que as touradas de morte são proibidas em Portugal. No final das lides a pé, não se dá a estocada, ela é simulada com uma bandarilha.
De uma forma geral, as histórias narradas limitam-se a acontecer e pouco ou nada acontece. As mais das vezes, morre-se. Não há aqui qualquer moral ou lição que se possa extrair, o que é uma pena, tendo em conta a simpatia com que o leitor é tratado no prefácio e que suscita curiosidade quanto ao que há-de vir.
Houve quem me tivesse dito que eu não estava a perceber a filosofia do livro mas eu acho que a percebo. Se formos a ver bem, os humanos são tratados como bichos e os bichos recebem tratos de humanos. Quer isto dizer que, no fundo, não há grandes distinções entre humanos e não-humanos, ou seja, que somos todos bichos.
- Veredicto - Se alguém vai ler o «Bichos» a pensar em algo do género das «Fábulas» de La Fontaine, do «Bambi», do «Dumbo», dos «Ursinhos Carinhosos» ou dos contos populares portugueses, engane-se. É mais ou menos como os contos dos irmãos Grimm só que com falta de Viagra mental. Ler este livro é como ouvir um álbum do Graciano Saga, tal não é a quantidade da sucessão de palermice e tragédias. Ao fim de alguns contos, até já dá vontade de rir. Fica-se com a mesma sensação que se tem ao ler as obras de Virgílio Ferreira ou Aquilino Ribeiro ou seja: não sei se alguma vez Miguel Torga foi alvo de perícia psiquiátrica mas decerto se o tivesse sido, seria classificado de psicopata. Como foi isto tornar-se uma obra de referência ensinada nas escolas? Mistério da Humanidade. Em suma, não vale a pena perder tempo com ele.
Que a caca esteja convosco!
P.S.: NÃO AO ACORDO ORTOGRÁFICO!!!